Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da memória,
mãos sujas no labor do subsolo,
apenas vos ofereço o choro vivo,
a revolta profunda e ignorada
dos homens solitários.
Somos os filhos do chão escuro, os frutos
sem planície e sem sol, os esquecidos
trabalhadores das minas tenebrosas.
Marinheiros do abismo
sem estrela e âncoras.
Caras de carvão, flores da treva, lírios
de luto brotando num jardim de turfas.
Homens duros e amargos, oriundos
de solidões calcáreas, escondemos
nosso protesto na ironia indócil,
não cortante como lâmina, pungente
como anedota de louco, confissões
de bêbado, música de cego.
É estranho esse modo de ferir, pedindo
desculpas. Amigos, perdoi-nos,
amigos, crede em nós, os homens tristes!
Sob a nossa máscara solene
existe um piedoso coração sangrando
por nós, por vós.
Um grito de mãe na tempestade, um morto
não identificado, uma janela
na noite do hospital, um pé descalço,
retirantes num carro de segunda,
um menino chorando numa esquina,
um homem fulminado numa praça,
a tecelã tossindo
sob a miséria coletiva, ou uma bandeira
no enterro do operário, tudo isso
nos comove, nos fere, nos afoga
em fundas cogitações e paralelos.
Um detalhe qualquer do drama humano,
da agonia milenária, prende
a nossa imaginação e acende o lume
de nossos poemas solidários.
No entanto, há céticos que aconselham: "Ingênuos,
por que esse apelo no deserto? Além
há poetas cantando a vida amena.
Fazei coro com eles. Os aplausos
coroarão os vossos ofertórios.
Dobrai a vossa espinha, erguei louvores
à farândula dos mitos!"
Impossível, embora
eu saiba que há rosas sob a lua,
plátonos dormindo na alameda intacta,
lotações de sereias, luminosas
vivendas na praia, entre piano e beijos,
autos deslizando como peixes no grande mar do tráfego,
e pernas oleosas, mãos de brinde
no espelho do champanhe, o baile, o sonho.
Impossível, pois sei também que existem
soluços e clamores,
lírios no charco, luta de afogados
contra as marés, o monopólio e a morte.
E isso me comove. Mais que o fogo
isso me ilumina e queima. Eu canto
a dor de meus irmãos, essa tragédia
do mundo desigual, da vida em pânico!
Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da memória,
só posso vos ditar, ao invés do leve
e inefável poema da alegria,
este canto sombrio, denso e amargo
como oceano de enigmas, doloroso
rio subterrâneo.
(Canto da Insubmissão - Bueno de Rivera)
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