terça-feira, 20 de outubro de 2009

Canto da Insubmissão

Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

mãos sujas no labor do subsolo,

apenas vos ofereço o choro vivo,

a revolta profunda e ignorada

dos homens solitários.


Somos os filhos do chão escuro, os frutos

sem planície e sem sol, os esquecidos

trabalhadores das minas tenebrosas.

Marinheiros do abismo

sem estrela e âncoras.

Caras de carvão, flores da treva, lírios

de luto brotando num jardim de turfas.


Homens duros e amargos, oriundos

de solidões calcáreas, escondemos

nosso protesto na ironia indócil,

não cortante como lâmina, pungente

como anedota de louco, confissões

de bêbado, música de cego.


É estranho esse modo de ferir, pedindo

desculpas. Amigos, perdoi-nos,

amigos, crede em nós, os homens tristes!

Sob a nossa máscara solene

existe um piedoso coração sangrando

por nós, por vós.


Um grito de mãe na tempestade, um morto

não identificado, uma janela

na noite do hospital, um pé descalço,

retirantes num carro de segunda,

um menino chorando numa esquina,

um homem fulminado numa praça,

a tecelã tossindo

sob a miséria coletiva, ou uma bandeira

no enterro do operário, tudo isso

nos comove, nos fere, nos afoga

em fundas cogitações e paralelos.


Um detalhe qualquer do drama humano,

da agonia milenária, prende

a nossa imaginação e acende o lume

de nossos poemas solidários.


No entanto, há céticos que aconselham: "Ingênuos,

por que esse apelo no deserto? Além

há poetas cantando a vida amena.

Fazei coro com eles. Os aplausos

coroarão os vossos ofertórios.

Dobrai a vossa espinha, erguei louvores

à farândula dos mitos!"


Impossível, embora

eu saiba que há rosas sob a lua,

plátonos dormindo na alameda intacta,

lotações de sereias, luminosas

vivendas na praia, entre piano e beijos,

autos deslizando como peixes no grande mar do tráfego,

e pernas oleosas, mãos de brinde

no espelho do champanhe, o baile, o sonho.

Impossível, pois sei também que existem

soluços e clamores,

lírios no charco, luta de afogados

contra as marés, o monopólio e a morte.

E isso me comove. Mais que o fogo

isso me ilumina e queima. Eu canto

a dor de meus irmãos, essa tragédia

do mundo desigual, da vida em pânico!


Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

só posso vos ditar, ao invés do leve

e inefável poema da alegria,

este canto sombrio, denso e amargo

como oceano de enigmas, doloroso

rio subterrâneo.


(Canto da Insubmissão - Bueno de Rivera)

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