quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Menino a Bico de Pena

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo, mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar.

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.

Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo.



Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita. E na parede tem o retrato de O Menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga. O braço ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão. Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem abertos, lambe a baba que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino.

"Quem é que você está chamando?", pergunta a mãe lá da cozinha.

Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno.

A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.

Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, pára de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá.

É mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar.

"Pois se você está todo molhado!"

A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: fonfom!, reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!

"Isso mesmo!", diz a mãe com orgulho, "isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua, vou contar para o papai que você já aprendeu, é assim mesmo que se diz: fonfom, meu amor!", diz a mãe puxando-o de baixo para cima e depois de cima para baixo, levantando-o pelas pernas, inclinando-o para trás, puxando-o de novo de baixo para cima. Em todas as posições o menino conserva os olhos bem abertos. Secos como a fralda nova.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

(Guimarães Rosa)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ODA A LA MUJER IMPERFECTA

Las mujeres imperfectas aman sus cuerpos, 
sus ciclos y lunas, con todas sus peculiaridades, 
tesoros y misterios.

Las mujeres imperfectas 
muestran con orgullo y honor las arrugas y las cicatrices,
porque son las marcas que las recuerdan que fueron, 
son y serán más grandes que el dolor.
Las mujeres imperfectas se atreven a soñar en voz alta, 
avanzan al mismo paso desde distintas esferas, 
crean un lienzo nuevo donde todos los colores son necesarios
y aceptan sus errores como forma valiosa de aprendizaje.

Las mujeres imperfectas respetan toda forma de vida 
y exigen de la misma manera respeto y justicia por la suya.

Las mujeres imperfectas llevan raíces en sus pies, 
ancladas a la Madre Tierra. 
Llevan en sus pasos a sus ancestras, hermanas, hijas y nietas. 
Bailan alrededor de las hogueras para mantener viva la llama de todas las mujeres 
que fueron quemadas en ellas por ser más imperfectas “de la cuenta”.

Las mujeres imperfectas celebran el inmenso regalo que les ha dado la vida al ser mujeres, 
gozan de su sexualidad y defienden el derecho vital de ser dueñas de sus cuerpos y sus vidas.
Las mujeres imperfectas se honran unas a otras, 
se dan la mano y el hombro, 
celebran los éxitos de las demás como si fueran suyos 
y lloran la lágrima de las demás como si las hirieran a ellas mismas.

Las mujeres imperfectas se rodean de hombres imperfectos, 
hombres sensibles, amorosos y despiertos 
que caminan al mismo paso, en el mismo sendero.

Las mujeres imperfectas aprenden a sentir la menstruación 
como un don que las convierte en dadoras de vida, 
como una poderosa apertura a otros mundos. 
Comprenden el dolor menstrual como un dolor muy antiguo 
de las mujeres que las precedieron por muchas generaciones 
y que supone la reconciliación con su útero y el útero de la madre tierra. 

Las mujeres imperfectas comienzan a recordar que su sangre no es basura, 
su sangre es sagrada y trae consigo la alquimia de la vida.

Las mujeres imperfectas levantan la voz por la femineidad muda en justicia y en derechos, 
por los sueños mutilados, las manos atadas por la Historia 
y la boca sellada por la tiranía; 
porque el silencio sometido contiene el grito de todas las mujeres
y el grito de una sola mujer contiene el eco de todos los cantos,
el cielo de todos los vuelos, la simiente de todas las flores.

En sus vientres traen un canto antiguo y una esperanza gestante. Vienen pariendo estrellas a este tiempo tan hambriento de luz.

Las mujeres imperfectas dicen bien alto que no tienen miedo, caminan sin temor y sin amnesia por un mundo lleno de miedo a las mujeres sin miedo.

Las mujeres imperfectas no son propiedad de nadie más que de sí mismas, no forman parte del masculino genérico, ni son costilla de nadie, ni objeto de deseo, ni son invisibles. Son mujeres y quieren ser nombradas como tal.

Las mujeres imperfectas son increíblemente perfectas cuando se atreven a ser imperfectas, cuando se atreven a ser quien las dé la gana ser, cuando se atreven a ser, sin más ni menos, a ser.

Las mujeres imperfectas comienzan a sentir la llamada, a reencontrarse con otras mujeres imperfectas donde se recuerdan todo aquello que el alma no debe olvidar.
Se recuerdan que no están solas, que nunca lo estuvieron; que nunca lo estarán.

Porque ser imperfectas las hace únicas, ser imperfectas las hace, al mundo, a ellos y a ellas, LIBRES.
(Ada Luz Márquez)