sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

das flores


(...)

Esperava as puras,

transparentes florações,

nascidas do ar, no ar,

como as brisas.

(...)

Depois, eu descobriria

que era lícito

te chamar: flor!

(Pelas vossas iguais

circunstâncias? Vossas

gentis substâncias? Vossas

doces carnações? Pelos

virtuosos vergéis

de vossas evocações?

Pelo pudor do verso

- pudor de flor -

por seu tão delicado

pudor de flor,

que só se abre

quando a esquece o

sono do jardineiro?)

Depois eu descobriria

que era lícito

te chamar: flor!

(...)

Como não invocar o

vício da poesia: o

corpo que entorpece

ao ar de versos?

(Ao ar de águas

mortas, injetando

na carne do dia

a infecção da noite).

Fome de vida? Fome

de morte, frequentação

da morte, como de

algum cinema.

O dia? Árido.

Venha, então, a noite,

o sono. Venha,

por isso, a flor.

Venha, mais fácil e

portátil na memória,

o poema, flor no

colête da lembrança.

Como não invocar,

sobretudo, o exercício

do poema, sua prática,

sua lânguida horti-cultura?

Pois estações

há, do poema, como

da flor, ou como

no amor dos cães;

e mil mornos

enxertos, mil maneiras

de excitar negros

êxtases, e a morna

espera de que se

apodreça em poema,

prévia exalação

de alma defunta.


Poesia, não será esse

o sentido em que

ainda te escrevo:

flor! (Te escrevo:

flor! Não uma

flor, nem aquela

flor-virtude - em

disfarçados urinóis).

Flor é a palavra

flor, verso inscrito

no verso, como as

manhãs no tempo.

Flor é o salto

da ave para o vôo;

o salto fora do sono

quando seu tecido

se rompe; é uma explosão

posta a funcionar,

como uma máquina,

uma jarra de flores.


...


todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.


(João Cabral de Melo Neto)

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