quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Il Trillo del Diavolo

...música de Giuseppe Tartini, violinista do séc XVIII, que acordou de um sonho, onde o diabo lhe tocava violino. Resolveu então anotar a melodia da qual se lembrava, deu a ela o nome de "Il Trillo del Diavolo" e esta se tornou sua obra mais conhecida...

pelo jeito o diabo não é o pai só do rock...

(aqui, a sonata executada por Itzhak Perlman)

A Cigana Adormecida

(Henri Rousseau / 1897)



A ADORMECIDA

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

(Paul Valéry / tradução: Augusto de Campos)

cuidado com o que você deseja...

vai que acontece!

e se não for só mais um "quase" ...
"Se tivesse acreditado
na minha brincadeira
de dizer verdades teria
ouvido verdades que
teimo em dizer brincando"

(Charles Chaplin)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Cats and Dogs


Cai chuva do céu cinzento

Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.


(Fernando Pessoa / Poesias Inéditas)

domingo, 22 de novembro de 2009

Les fleurs du mal



"La fontaine de sang"

Il me semble parfois que mon sang coule à flots,
Ainsi qu'une fontaine aux rythmiques sanglots.
Je l'entends bien qui coule avec un long murmure,
Mais je me tâte en vain pour trouver la blessure.

À travers la cité, comme dans un champ clos,
Il s'en va, transformant les pavés en îlots,
Désaltérant la soif de chaque créature,
Et partout colorant en rouge la nature.

J'ai demandé souvent à des vins captieux
D'endormir pour un jour la terreur qui me mine;
Le vin rend l'oeil plus clair et l'oreille plus fine!

J'ai cherché dans l'amour un sommeil oublieux;
Mais l'amour n'est pour moi qu'un matelas d'aiguilles
Fait pour donner à boire à ces cruelles filles!

(Charles Baudelaire)

da sorte

(LEMINSKI)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

switchstance II / poema sem acento II

eis que ela trocara o nome das coisas

de quem amante, de quem amado
e dera a elas nomes novinhos
que ela mesma havia inventado

e eles trocaram a ordem de tudo

e ela ficou sem saber para que lado
perdida entre dois caminhos
muita escolha, desencontro marcado

A musa chapada

(...)
vênus vestindo
.........um manto de água
a ninfa chapada
.........de olhos elétricos
cores girando
..........no abismo sem fundo
dança de estrelas
..........no teto da sala
dois sóis em cada ontem
..........três vozes
na voz de quem cala


(Ademir Assunção e Antonio Vicente Seraph
im Pietroforte)

O céu canta para ela...

OYÁ

menina afogueada fruta verde
virada na ponta do casco
brasa que anima o toque
ventania da savana
fagulha ligeira que esparrama

é parreira alada, é Matamba
folha rebelde de Aruanda

(Ana Ramiro)




The Art of Storm-riding

"I could not decipher the living riddle of my body

put it to sleep when it hungered, and overfed it

when time came to dream

I nearly choked on the forked tongue of my spirit

between the real and the ideal, rejecting the one

and rejected by the other

I still have not mastered that art of storm-riding

without ears to apprehend howling winds

or eyes for rolling waves

Always the weather catches me unawares, baffled

by maps, compass, stars and the entire apparatus

of bearings or warning signals

Clutching at driftwood, eyes screwed shut, I tremble

hoping the unhinged night will pass and I remember

how once I shielded my flame."


(Yahia Lababidi)




a trilha sonora

COMPLEX SYSTEM
a very complex one...

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

you're welcome!

anoitece em Sampa

noite quente / conversa delas II

(*) - Com ou sem colarinho?
(%) - Sem.
($) - Com!
(#) - Ah... ela já bebeu!!!
(%) - Ah, nem vi... desculpa, não dá nada...
(*) - Aeee um brinde
($) - Hahahahahaha
(#) - Tintim

pronto começou...

SÓ A PROSA É QUE SE EMENDA

"Só a prosa é que se emenda. O verso nunca se emenda. A prosa é artificial. O verso é que é natural. Nós não falamos em prosa. Falamos em verso. Falamos em verso sem rima nem ritmo. Fazemos pausas na conversa que na leitura da prosa se não podem fazer. Falamos, sim, em verso, em verso natural - isto é, em verso sem rima nem ritmo, com as pausas do nosso folêgo e sentimento".

(Alberto Caeiro)

La Philosophie dans le Boudoir

"Amo demais o prazer para ter só uma afeição. Infeliz da mulher que se entrega a esse sentimento! Um amante pode fazê-la perder-se, enquanto dez cenas de libertinagem, repetidas a cada dia, se ela assim desejar, se desvanecem na noite do silêncio logo que consumadas".

(Mme. de Saint Ange, em "La Philosophie dans le Boudoir", do Marquês de Sade)

(...hei de saber o amor à tua maneira...)

XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

(Hilda Hilst / "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos")

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

(des)culpa

"sabe da última?
a chuva lavou
a minha culpa"

(Leminski)

Grey Rain

presente do Eduardo Freitas, lá do Zona Crepuscular

XVI - A Torre

7

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

(Lisboa, fevereiro de 1914)
Mário de Sá-Carneiro

concrete jungle



(dessa eu acho que o Bob ia gostar...)

domingo, 15 de novembro de 2009

sábado, 14 de novembro de 2009

do vento II / poema sem acento

quem joga palavras ao vento
sem saber pr'onde ele sopra
devia andar mais atento

que as palavras fazem volta
redemoinho adentro

e depois o vendaval cobra
a brisa d'outro momento

"O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado."

(Vinicius de Moraes)


"Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

e um dia me acabarei."

(Timidez, Cecília Meireles)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Sou legal, eu sei

Sou legal, eu sei
Agora só falta convencer a lei
Sou real, eu sei
Agora só falta convencer o rei

Eu sei que sou legal
O duro é provar
Que sou legal, eu sei
Mas isso não sei
Se vão deixar dizer
Eu sei que tudo o mais
Vai pro beleléu
A terra, o mar, o céu
Mas nessa hora eu quero mais é estar
Com a turma do pinel

(Leminski)

And, in another dream...

And, just for that night,
I changed my dream
This new one
He won't fly, I know,
But he also won't fool me...
He has read everything I wrote
And smiles faithfully...
He is real, although it's just a dream
He likes my true lies,
and I can trust him...
And just for tonight, I believe,
It won't be a a sin...
"O QUE É MEU É MEU. O QUE NÃO É PODE VIR A SER."

Canção de Alta Noite

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... — enquanto consente
Deus que a noite seja andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.

(mais de Vaga Música, de 1942, da Cecília Meireles)

sonho de sobra

Hoje falta o sono. Sobra na noite esse vazio da tela, e por enquanto, sobram também as palavras. Estranho, muito estranho, sobrarem palavras quando falta o que escrever. Estranho-me sem assunto. Mais ou menos como ainda me estranho no espelho, de cabelo curto. Mais ou menos estranho como o sonho da noite passada... Completamente novo e complexo! E agora espero por ele também, que assim como os outros, já sei que virá um dia. Uma noite, mais provável... Outra noite, quem sabe em outro sonho... Quem sabe hoje?

"Ontem, dormi para ensonhar.
E mais uma vez, acordei querendo voltar"

terça-feira, 10 de novembro de 2009

quem procura não acha... (maya ou samsara)


"Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado.
Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso."



(Caio Fernando Abreu)

Canção do Caminho

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

Cecília Meireles, em Vaga Música

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

7 rosas na gira


que tanto ela leu
em mãos tão pequenas?
quanto segredo cabe
em uma alma apenas?


"Vinha caminhando a pé,
para ver se encontrava a minha cigana de fé.
Parou e leu minha mão..."

"Ela vem caminhando,
Ela chega girando
Na ponta do pé"

(pontos)

elegbara

só deixo meu coração na mão de quem pode

só deixo meu coração
na mão de quem pode
fazer da minha alma
suporte
pr'uma vida
insinuante
insinuante
anti-tudo que não
possa ser
bossa-nova hardcore
bossa-nova nota dez
quero dizer
eu tô pra tudo nesse mundo
então só vou
deixar meu coração
a alma do meu corpo
na mão de quem
pode
na mão de quem
pode
e absorve
todo céu
qualquer inferno
inspiração
de mutação
da vagabunda intenção
de se jogar
na dança absoluta
da matança
do que é tédio
conformismo
aceitação
do fico aqui
vou te levando
nessa dança
submundo pode tudo
do amor
porque não quero teu ciúme que é o cúmulo
ciúme é acúmulo de dúvida, incerteza
de si mesmo
projetado
assim jogado
como lama anti-erótica
na cara do desejo mais
intenso de ficar com a pessoa
e eu não tô à toa
eu sou muito boa
eu sou muito boa pra vida
eu sou a vida
oferecida
como dança e não
quero te dar gelo
jealous guy
vê se aprende
se desprende
vem pra mim
que sou esfinge do amor
te sussurrando
decifra-me
só deixo minha alma
só deixo o coração
só deixo minha alma
na mão de quem pode
só deixo minha alma
só deixo meu coração
na mão de quem ama solto
eu vou dizendo
que só deixo minha alma
só deixo meu coracão
na mão de quem pode
fazer dele erótico suporte
pra tudo que é ótimo fator vital

(Katia B/ Marcos Cunha/ Plínio Profeta/ Fausto Fawcett)






domingo, 8 de novembro de 2009

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

— Eu faço versos como quem morre.


(Manuel Bandeira, em A Cinza das Horas, 1917)

QUASE

Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...........................................
...........................................

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

(Mário de Sá-Carneiro, Paris, 13 de maio de 1913)

sábado, 7 de novembro de 2009

As Metamorfoses do Vampiro / Flores do Mal III

"A boca úmida eu tenho e trago em minha ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
Sou como, a quem vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios,
Ou quando o seio oferto ao dente que mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"


(Charles Baudelaire)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

As Formigas


Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando ...

Marcham em filas cerradas;
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
E das pedras se desviam.

Entre os calhaus vão abrindo
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Acolá, galgando um muro.

Esta carrega a migalha;
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Outra, uma pata de inseto.

Carrega cada formiga
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.

(...)

Olavo Bilac

"Eu é um outro"

COMIGO ME DESAVIM

Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

(Sá de Miranda)

olha-me de novo

"Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento."

(Hilda Hilst, "Dez chamamentos ao amigo"))

(perfume)


hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de laranjeira



Leminski

Poe(try) / The Raven





Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels named Lenore -
Nameless here for evermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.
Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels named Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels named Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!

(Edgar Allan Poe 1845 / imagem de Gustave Doré, da edição de 1884)


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Nem vem que não tem

... do peso da alma

"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

não há quem prove o contrário
ele já começou sua caminhada
em passinhos lentos e titubeantes
que é como ele sabe andar agora
e ele olha para trás,
talvez queira guardar imagens
talvez queira que o acompanhemos
se eu pudesse...
talvez não seja nada disso...
e ele já saiba de tudo
e assim como eu esteja apenas esperando
talvez ele saiba o quanto eu queria poder...
talvez ele entenda, mais que nós...
que aonde ele for, uma parte minha vai com ele
assim como em mim, sempre haverá parte dele

sete vezes sorte


na vida, seria a morte
no sonho vieram sete
mas no sonho era sorte:
sorte a minha vezes sete
sete vezes minha sorte!

segunda sem gira

O Gato Preto


Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda a certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei esclarecê-los. O sentimento que em mim despertaram foi quase exclusivamente o de terror; a muitos outros parecerão menos terríveis do que extravagantes. Mais tarde, será possível que se encontre uma inteligência qualquer que reduza a minha fantasia a uma banalidade. Qualquer inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha encontrará tão somente nas circunstâncias que relato com terror uma sequência bastante normal de causas e efeitos.
Já na minha infância era notado pela docilidade e humanidade do meu carácter. Tão nobre era a ternura do meu coração, que eu acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha uma especial afeição pelos animais e os meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade deles. Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer e os acariciava. Esta faceta do meu carácter acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das minhas principais fontes de prazer. Quanto àqueles que já tiveram uma afeição por um cão fiel e sagaz, escusado será preocupar-me com explicar-lhes a natureza ou a intensidade da compensação que daí se pode tirar. No amor desinteressado de um animal, no sacrifício de si mesmo, alguma coisa há que vai direito ao coração de quem tão frequentemente pôde comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade do homem.
Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha mulher uma disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o meu gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me proporcionar alguns exemplares das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho, e um gato.
Este último era um animal notavelmente forte e belo, completamente preto e excepcionalmente esperto. Quando falávamos da sua inteligência, a minha mulher, que não era de todo impermeável à superstição, fazia frequentes alusões à crença popular que considera todos os gatos pretos como feiticeiras disfarçadas. Não quero dizer que falasse deste assunto sempre a sério, e se me refiro agora a isto não é por qualquer motivo especial, mas apenas porque me veio à ideia.
Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e seguia-me por toda a parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que conseguia impedir que me seguisse na rua.
A nossa amizade durou assim vários anos, durante os quais o meu temperamento e o meu carácter sofreram uma alteração radical - envergonho-me de o confessar - para pior, devido ao demónio da intemperança. De dia para dia me tornava mais taciturno, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Permitia-me usar de uma linguagem brutal com minha mulher. Com o tempo, cheguei até a usar de violência. Evidentemente que os meus pobres animaizinhos sentiram a transformação do meu carácter. Não só os desprezava como os tratava mal. Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa consideração que me não deixava maltratá-lo. Quanto aos outros, não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco e até o cão, quando por acaso ou por afeição se atravessavam no meu caminho.
Mas a doença tomava conta de mim - pois que doença se assemelha à do álcool? - e, por fim, até o próprio Plutão, que estava a ficar velho e, por consequência, um tanto impertinente, até o próprio Plutão começou a sentir os efeitos do meu carácter perverso.
Certa noite, ao regressar a casa, completamente embriagado, de volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, horrorizado com a violência do meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os dentes. Uma fúria dos demónios imediatamente se apossou de mim. Não me reconhecia. Dir-se-ia que a minha alma original se evolara do meu corpo num instante e uma ruindade mais do que demoníaca, saturada de genebra, fazia estremecer cada uma das fibras do meu corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pelo pescoço e, deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita! Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do acto.
Entretanto, o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de costume, mas, como seria de esperar, fugia aterrorizado quando eu me aproximava. Porém, restava-me ainda o suficiente do meu velho coração para me sentir agravado por esta evidente antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim. Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE fez de seguida a sua aparição. Deste espírito não cura a filosofia. No entanto, não estou mais certo da existência da minha alma do que do facto que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano; uma dessas indivisas faculdades primárias, ou sentimentos, que deu uma direcção ao carácter do homem. Quem se não surpreendeu já uma centena de vezes cometendo uma acção néscia ou vil, pela única razão de saber que a não devia cometer? Não temos nós uma inclinação perpétua, pese ao melhor do nosso juízo, para violar aquilo que constitui a Lei, só porque sabemos que o é? E digo que este espírito de perversidade surgiu para minha perda final. Foi este anseio insondável da alma por se atormentar, por oferecer violência à sua própria natureza, por fazer o mal só pelo mal, que me forçou a continuar e, finalmente, a consumar a maldade que infligi ao inofensivo animal. Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com as lágrimas a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração; enforquei-o porque sabia que me tinha tido afeição e porque sabia que não me tinha dado razão para a torpeza; enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado, um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal a ponto de a colocar, se tal fosse possível, mesmo para além do alcance da infinita misericórdia do Deus Mais Piedoso e Mais Severo.
Na noite do próprio dia em que este acto cruel foi perpetrado, fui acordado do sono aos gritos de «Fogo!». As cortinas da minha cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante mergulhei no desespero.
Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer uma sequência de causa a efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me, porém, a narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero deixar nem um elo sequer incompleto. Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, à excepção de uma, tinham abatido por completo. Esta excepção era constituída por um tabique interior, não muito espesso, que estava sensivelmente a meio da casa, e de encontro ao qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em grande parte à acção do fogo, facto que atribuo a ter sido pouco antes restaurado.
Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, com minúcia e grande atenção. A minha curiosidade foi despertada pelas palavras «estranho», «singular» e outras expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa. Em volta do pescoço do animal estava uma corda.
Mal vi a aparição, pois nem podia pensar que doutra coisa se tratasse, o meu assombro e o meu terror foram imensos. Por fim, a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o gato fora enforcado num jardim junto à casa. Após o alarme de incêndio, O dito jardim fora imediatamente invadido pela multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o deve ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta. Isto deve ter sido feito, provavelmente, com a intenção de me acordar. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco recentemente aplicado e cuja cal, combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, tinha produzido a imagem tal como eu a via.
Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão - que não totalmente a minha consciência - sobre o facto extraordinário atrás descrito, não deixou este, no entanto, de causar profunda impressão na minha imaginação. Durante meses não consegui libertar-me do fantasma do gato, e, durante este período, voltou-me ao espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, mas que o não era. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e a procurar à minha volta, nos sórdidos tugúrios que agora frequentava com assiduidade, um outro animal da mesma espécie e bastante parecido que preenchesse o seu lugar.
Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num antro mais do que infamante, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que repousava no topo de um dos enormes toneis de gin ou de rum que constituíam o principal mobiliário do compartimento. Havia minutos que olhava para a parte superior do tonel, e o que agora me causava surpresa era o facto de não me ter apercebido mais cedo do objecto que estava em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um gato preto, um gato enorme, tão grande como Plutão e semelhante a ele em todos os aspectos menos num. Plutão não tinha sequer um único pêlo branco no corpo, enquanto este gato tinha uma mancha branca, grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito.
Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou com força, roçou-se pela minha mão, e parecia contente por o ter notado. Era este, pois, o animal que eu procurava. Imediatamente propus a compra ao dono, mas este nada tinha a reclamar pelo animal, nada sabia a seu respeito, nunca o tinha visto até então.
Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti que o fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar enquanto caminhava. Quando chegou a casa, adaptou-se logo e logo se tornou muito amigo da minha mulher
Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma antipatia por ele. Era exactamente o reverso do que eu esperava, mas, não sei como nem porquê, a sua evidente ternura por mim desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, a pouco e pouco, esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um certo sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior acto de crueldade impediram-me de o maltratar fisicamente. Abstive-me, durante semanas, de o maltratar ou exercer sobre ele qualquer violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, cheguei a nutrir por ele um horror indizível e a fugir silenciosamente da sua odiosa presença como do bafo da peste.
O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi descobrir, na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como Plutão, tinha também sido privado de um dos seus olhos. Esta circunstância, contudo, mais afeição despertou na minha mulher, que, como já disse, possuía em alto grau aquele sentimento de humanidade que fora em tempos característica minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros.
Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele a sua preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me sentava, enroscava-se debaixo da minha cadeira ou saltava-me para os joelhos, cobrindo-me com as suas repugnantes carícias. Se me levantava para caminhar, metia-se-me entre os pés e quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e aguçadas no meu roupão, trepava-me até ao peito. Em tais momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por um verdadeiro medo do animal.
Este medo não era exactamente o receio de um mal físico; no entanto, é me difícil defini-lo de outro modo. Quase me envergonhava admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de malfeitor, eu me envergonho de admitir - que o terror e o horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das fantasias mais perfeitas que é possível conceber. Minha mulher tinha-me chamado várias vezes a atenção para o aspecto da mancha de pêlo branco de que já falei, e que era a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu tinha eliminado. O leitor lembrar-se-á que esta marca, embora grande, era, originariamente, bastante indefinida, mas, gradualmente, por fases quase imperceptíveis e que durante muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como fantasiosas, assumira, finalmente, uma rigorosa nitidez de contornos. Era agora a imagem de um objecto que me repugna mencionar, e por isso eu o odiava e temia acima de tudo, e ter-me-ia visto livre do monstro se o ousasse. Era agora a imagem de uma coisa abominável e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte.
Por essa altura, eu era, na verdade, um miserável maior do que toda a miséria humana. E um bruto animal cujo semelhante eu destruíra com desprezo, um bruto animal a comandar-me, a mim, um homem, feito à imagem do Altíssimo - oh!, desventura insuportável. Ah, nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso! Durante o dia o animal não me deixava um só momento. De noite, a cada hora, quando despertava dos meus sonhos cheios de indefinível angústia, era para sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu rosto e o seu peso enorme, incarnação de um pesadelo que eu não tinha forças para afastar, pesando-me eternamente sobre o coração.
Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos resquícios do bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos pecaminosos me eram familiares - os mais sombrios e os mais infames dos pensamentos. A tristeza do meu temperamento aumentou até se tornar em ódio a tudo e à humanidade inteira. Entretanto, a minha dedicada mulher era a vítima mais usual e paciente das súbitas, frequentes e incontroláveis explosões de fúria a que então me abandonava cegamente.
Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o que me exasperou até à loucura. Apoderei-me de um machado, e desvanecendo-se na minha fúria o receio infantil que até então tinha detido a minha mão, desferi um golpe sobre o animal, que seria fatal se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe foi sustido diabólicamente pela mão da minha mulher. Enraivecido pela sua intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio. Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume.
Consumado este horrível crime, entreguei-me de seguida, com toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitos projectos se atropelaram no meu cérebro. Em dado momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um a um pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma cova no chão da cave. Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um carregador para o tirar de casa. Por fim, detive-me sobre o que considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na cave como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas.
A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As paredes não tinham sido feitas com os acabamentos do costume e, recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer. Além do mais, numa das paredes havia uma saliência causada por uma chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido entaipada para se assemelhar ao resto da cave. Não duvidei que me seria fácil retirar os tijolos neste ponto, meter lá dentro o cadáver e tornar a pôr a taipa como antes, de modo que ninguém pudesse lobrigar qualquer sinal suspeito.
Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de um pé-de-cabra retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar cuidadosamente o corpo de encontro à parede interior, mantive-o naquela posição ao mesmo tempo que, com um certo trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo.
Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras com que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, com o maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com satisfação que tudo estava certo. A parede não denunciava o menor sinal de ter sido mexida. Com o maior escrúpulo, apanhei do chão os resíduos. Olhei em volta, triunfante, e disse para comigo: «Aqui, pelo menos, não foi infrutífero o meu trabalho.»
A seguir procurei o animal que tinha sido a causa de tanta desgraça, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que o astuto animal se alarmara com a violência da minha cólera anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o meu estado de espírito. É impossível descrever ou imaginar a intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do detestável animal me trouxe. Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos por uma noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; sim, dormi, mesmo com o crime a pesar-me na consciência.
Passaram-se o segundo e terceiro dias e o meu verdugo não aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro, aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! Nunca mais voltaria a vê-lo!
Suprema felicidade a minha! A culpa da acção tenebrosa inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios que colheram respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma busca, mas, naturalmente, nada se descobriu. Dava como certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o crime, surgiu inesperadamente em minha casa um grupo de agentes da Polícia que procederam a uma rigorosa busca. Eu, porém, confiado na impenetrabilidade do esconderijo, não sentia qualquer embaraço. Os agentes quiseram que os acompanhasse na sua busca. Não deixaram o mínimo escaninho por investigar. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Nem um músculo me tremeu. O meu coração batia calmamente como o coração de quem vive na inocência. Percorri a cave de ponta a ponta. De braços cruzados no peito, andava descontraído de um lado para o outro. Os agentes estavam completamente satisfeitos e prontos para partir. O júbilo do meu coração era demasiado intenso para que o pudesse suster. Ansiava por dizer pelo menos uma palavra à guisa de triunfo e para tornar duplamente evidente a sua convicção da minha inocência.
- Senhores - disse por fim, quando iam a subir os degraus. - Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita saúde para todos, e um pouco mais de cortesia. A propósito, esta casa está muito bem construída (e no meu furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade, mal sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes... vão-se já embora, meus senhores?... Estas paredes estão solidamente ligadas. - E neste momento, por uma frenética fanfarronice, bati com força, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se encontrava o cadáver da minha querida esposa.
Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemónio! Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio abafado e entrecortado como o choro de urna criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua agonia e dos demónios no gozo da condenação.
Seria insensato falar dos meus pensamentos. Senti-me desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes. Logo a seguir, doze braços vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um só golpe. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de pastas de sangue, apareceu erecto frente aos circunstantes. Sobre a cabeça, com as vermelhas fauces dilatadas e o olho solitário chispando, estava o odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o monstro no túmulo!


(Edgar Allan Poe)